Por quê? (126) Adeus, Lourenço Diaféria


Cláudio Amaral

Perdi mais um Amigo.

Lourenço Diaféria (foto), o cronista de São Paulo, nos deixou na noite de terça-feira, dia 16 de setembro de 2008.

Fizemos parte da turma que heroicamente elegeu Emir Nogueira presidente do Sindicato dos Jornalistas no Estado de São Paulo.

Ficamos anos sem nos ver, nem nos falar, depois da morte de Emir Nogueira em pleno exercício do mandato.

Fui reapresentado a ele em meados dos anos 1980 pelo também Amigo e jornalista Daniel Pereira.

Daniel, o “Sogrão”, foi buscar Diaféria na Secretaria Estadual da Fazenda, onde ele era funcionário de carreira.

Fizemos uma proposta e ele aceitou na hora.

Aceitou e cumpriu plena e integralmente, do primeiro ao último dia.

Diaféria escrevia três crônicas por semana e nós, Daniel Pereira e eu, comercializávamos os textos de autoria dele junto a jornais e revistas de todo o Brasil, via COMUNIC Comunicadores Associados.

As crônicas de Diaféria eram tão interessantes que os mensageiros da COMUNIC disputavam, quase a tapas, o privilégio de ir até a casa dele, o cronista, na Lapa.

Na volta, o mensageiro vinha lendo e se deliciando com as histórias contadas por Diaféria.

Eram crônicas do cotidiano, a respeito de gente simples.

Aliás, simplicidade era uma das principais características de Lourenço Diaféria.

Esse era o segredo do sucesso que ele fez por todos os veículos pelos quais passou: Folha da Manhã, Folha de S. Paulo, Jornal da Tarde, Diário Popular, Diário do Grande ABC, rádios Excelsior, Gazeta, Record e Bandeirantes, e, por fim, TV Globo.

Diaféria escrevia com facilidade. Era rápido e engraçado.

Jamais fez uma crônica ofensiva a quem-quer-que seja.

Nem mesmo quando escreveu uma crônica de exaltação ao heroísmo do bombeiro que pulou a grade que cercava uma fera para salvar uma vida humana.

Quem entendeu que Herói. Morto. Nós., publicada na edição de 1º de setembro de 1977 da Folha de S. Paulo, era ofensiva às Forças Armadas não tinha inteligência suficiente para entender as crônicas de Lourenço Diaféria.

Crônicas que exaltavam e respeitavam os seres humanos, os brasileiros, gente simples, gente do povo.

Crônicas como esta, que fazemos questão de republicar:

Herói. Morto. Nós.

Lourenço Diaféria

Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos. O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra. Que nome devo dar a esse homem? Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor. Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas consequências. O herói redime a humanidade à deriva. Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major. Está morto. Um belíssimo sargento morto. E todavia. Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias. O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel -onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer- oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar. O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos. No instante em que o sargento -apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher- salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos. Esse sargento não é do grupo do cambalacho. Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais. É apenas um homem que -como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem- não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa. O povo prefere esses heróis: de carne e sangue. Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais. É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos. Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos- mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar. Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos. E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis -tarde demais.

Nunca é tarde demais para reconhecer os valores do ser humano, do cronista e do cidadão Lourenço Diaféria, um verdadeiro herói. Herói vivo. Vivo para sempre. Pois quem tem a sensibilidade demonstrada por Diaféria jamais morre.

Por quê?

Ah... e você ainda pergunta por que, caro e-leitor?

17/9/2008 23:24:25

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