Por quê? (203) Boa vontade


Cláudio Amaral

“Pequena Cinderela” nem sempre teve boa vontade para a ir à escola, mas hoje foi demais.

Vovó ligou do caminho, antes de cruzar a Avenida Lins de Vasconcelos, rumo ao Metrô Alto do Ipiranga, e – acredite se quiser – ela atendeu com visível boa vontade.

Disse que já estava pronta.

Estava vestida, penteada... só não falou que estava descalça e sem agasalho.

Omitiu também que faltava escovar os dentes... mas tudo isso era detalhe de somenos (palavra que ela ainda desconhece, mas que está no meio da segunda coluna da página 1196 do Dicionário Escola da Língua Portuguesa, editado pela Academia Brasileira de Letras e Companhia Editora Nacional em 2008).

A boa vontade era tanta, mas tanta, que ela até perguntou do “titio-padrinho”. E deu gargalhada diante da resposta da vovó.

Quando, entretanto, vovó e vovô chegaram ao apê em que ela mora com papai, mamãe e irmãozinho, ao invés de pular do sofá de uma só vez e correr para apertar o botão do elevador, como ele gosta de fazer, a “Pequena Cinderela” estava sentada e a assistir a um DVD que mais parecia o canal 45 da Net.

Vovô-motorista foi buscá-la porque papai tinha aula de aperfeiçoamento da língua inglesa e mamãe havia agendado compromisso para logo cedinho.

Vovó, “minha querida vovó”, estava ali porque se comprometera a ficar de babá do “Pequeno Príncipe”, como, de resto, fazia quase todo dia.

E ela, que está em férias mas nem tanto, hoje deveria estar de boa vontade, muita boa vontade, porque era “dia de balé”, e ela gosta muito de balé.

Mas... não.

Para começar, recusou a saudação do vovô, dizendo:

- É “bom dia” e só, vovô. Nada de “amor”.

O vovô havia dito a ela:

- Bom dia, meu amor.

Ela aceitara o “bom dia”, mas recusara o “meu amor”. Como, alias, fizera outras tantas vezes.

O jeito foi vovó convidá-la para a higiene bucal:

- Vamos escovar os dentes, “Princesa”?

Ao terminar, ela entregou a escova ao vovô, que deu mais umas esfregadinhas. Nos dentes da frente, pelo menos.

A partir daí, foi uma árdua batalha até entrar no elevador.

De nada adiantou dizer que ela poderia apertar o botão de pausa e seguir a assistir o DVD ao voltar da escolinha, que hoje era dia de balé, que ela tinha as unhas feitas na véspera pela Carmem, em casa dos avós.

Nada de nada.

A “Pequena Cinderela” só saiu correndo rumo ao elevador quando ouviu o barulho do “sobe-e-desce”.

Saiu correndo do apê e correndo entrou no elevador.

Apertou o botão “2-S” e ficou na expectativa da chegada ao piso em que o vovô havia estacionado o “carro vermelho” de que tanto ela gosta.

Nem assim ela se animou a entrar na “Ferrari do vovô”.

Queria, porque queria, ir...

- ...no carrão do papai (que é grande e preto).

Mesmo assim, foi no Honda Fit do vovô.

Ela, o “Pequeno Príncipe” e a vovó. E o vovô-motorista, claro.

Só ao longo do percurso entre a Chácara Santa Cruz e a Avenida Bosque da Saúde ela abriu o jogo e explicou a razão da falta de vontade de ir à escolinha, hoje:

- É que o Pedro Henrique é muito chato, vovó.

Por quê?

Ah... e você ainda pergunta por que, caro e-leitor?

(*) Cláudio Amaral clamaral@uol.com.br é jornalista desde 1º de maio de 1968.

13/7/2010 17:22:37

Comentários

samuelmarini.com disse…
Nossa, consegui ler tudo.

Legal seus textos, Cláudio.

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