Por quê? (164) Sem peça de reposição


Cláudio Amaral

Certa vez, algo em torno de 1996, uma profissional de Recursos Humanos que me entrevistava para decidir se me contrataria ou não para trabalhar na empresa a que ela servia, me perguntou:

- Por que você quer mudar de emprego?

E eu, ingenuamente, respondi: porque meu diretor é uma pessoa complicada, muito difícil.

E ela, a profissional de RH, quebrou minhas pernas ao me dizer, de pronto, na cara e na lata:

- Todos os seres humanos são complicados.

Diante da minha cara de interrogação, ela emendou:

- Imagine você se todos nós fossemos descomplicados, previsíveis?

E enquanto eu fazia o que ela havia me pedido, ou seja, imaginava seis bilhões de pessoas agindo sempre dentro da mesma lógica e do mesmo comportamento, ela, novamente ela, disparou:

- O mundo seria a maior chatice. Monotonia total.

Deixei o prédio em que funcionava a Reuters, a maior agência de informações do mundo, na região da Praça da Sé, bem no centro financeiro de São Paulo, e voltei com o rabo entre as pernas, pensativo, para a Rua Barão de Limeira e para o edifício 425, onde até hoje funciona boa parte das atividades do Grupo Folha de S. Paulo.

Voltei e fiquei a imaginar que eu merecia um chefe melhor, um diretor menos desequilibrado e mais pragmático. Mais eficiente, também.

Mas, como ele era bem relacionado com o chefe dos chefes, conclui que era mais fácil eu me adaptar a ele do que ele a mim.

Ou seja: ou eu me acertava com ele, ou deveria continuar a procurar outro emprego.

E foi o que eu fiz, indo para o Jornal do Brasil, onde, mesmo tendo um salário 50% maior, quebrei a cara mais cedo do que imaginava.

Tudo isso me veio à mente no meio da tarde deste sábado e a propósito de um comentário que ouvi na Rádio Jovem Pan, em função da morte, na manhã de hoje, de um dos maiores comediantes da atualidade, o português Raul Solnado:

- Ele se foi sem deixar peça de reposição.

E aí eu fiquei a me perguntar: e ele deveria ter deixado peça de reposição?

Imaginei o que seria de nós se todos deixássemos peças de reposição. Um ser humano para ocupar o lugar de cada ser humano que deixasse essa vida terrena.

Como seria a peça de reposição de Raul Solnado? E de Pelé? E de Sarney? E de Lula? E de Collor? Como seria...

Será que a partir daí o ser humano deixaria de ser complicado e imprevisível?

Ou seria exatamente como é hoje e desde o início da Humanidade?

Por quê?

Ah... e você ainda pergunta por que, caro e-leitor?

(*) Cláudio Amaral clamaral@uol.com.br é jornalista desde 1º de maio de 1968, repórter, editor, professor e orientador de jovens jornalistas, palestrante e consultor de empresas para assuntos de comunicação empresarial e institucional.

8/8/2009 23:55:08

Comentários

Creio que a pergunta é: Porque o ser humano tem que ser complicado? Só porque os psicólogos só conhecem esse tipo de ser humano? Já pensou ela deixando de exercer a sua profissão, só porque não há mais gente complicada e estressada que não se entende? Creio que ela tem razão. Seria mais pessoas nas filas do desemprego...
Arquivos1000 disse…
Oi, Cláudio! Tudo bem? Fiquei sabendo da morte do grande Raul Solnado pelo texto em seu blog. É a adaptação de um clichê, mas vale: o mundo, principalmente o que fala a Língua Portuguesa, ficou mais triste. Abraço!

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